NÓS NÃO VIVEMOS EM SOCIEDADE, por JOHN GANZ

 

We Don’t Live In A Society, por John Ganz

Unpopular Front, 27 de Maio de 2022

Selecção e tradução de Júlio Marques Mota

 

Join, or Die - Wikipedia

 

Algo está fora dos eixos. Os tiroteios das últimas duas semanas, os assassinatos racistas no supermercado Búfalo e o massacre aparentemente sem sentido na escola primária de Uvalde, não são novidade. São acontecimentos muito regulares na vida americana, mas parece que a quantidade se está a transformar em qualidade: isto já não é uma aberração, esta é a norma, este é o país em que vivemos. O sistema pode aparentemente absorver estas coisas infinitamente. Sente-se ainda pior, como se as coisas fossem ativamente concebidas para frustrar os imperativos básicos da vida comunitária e da ação coletiva: poder reunir-se livre e pacificamente organizar uma petição  ao governo que proceda à reparação das  queixas. A mera ideia de mudar as leis, a coisa mais básica que uma sociedade pode fazer quando confrontada com um problema, parece agora impossível. O escândalo é difuso, imediatamente agitado por uma máquina de propaganda que nos diz que a única solução para as armas é mais armas. Ou armas e mais “escolas mais reforçadas”, por outras palavras, transformadas em fortificações. Para onde estamos a ir? Uma sociedade como uma zona de guerra, ou seja, a ausência total de sociedade.

Tudo parece estar agora a andar para trás. No início da tradição liberal, Thomas Hobbes imaginava o Bellum contra omnium omnes, “uma guerra perpétua de cada homem contra o seu próximo”, como o ponto de origem da política, a condição insuportável de onde ela surgiu; o início, não o objetivo. O seu Estado Leviatã, por mais aterrador, remoto e tirânico que possa ser, é pelo menos suposto garantir a segurança. Está ai a sua  fonte de legitimidade: e esta removia os constantes terrores do estado da natureza, pelo medo mais limitado e controlado do Estado. O indivíduo isolado, o átomo racional e auto‑interessado, desejaria inevitavelmente prosseguir para este estado, preferindo-o à vida “solitária, pobre, desagradável, brutal, e curta” no exterior. É tudo muito lógico, uma progressão para a civilização pelas leis da natureza e da razão. Mas parece ter sido exatamente errado: quando somos tratados como átomos, tendemos para a entropia, tendemos a desagregarmo-nos  em vez de nos unirmos, em vez de nos juntarmos. Em todo o  caso, parece que estamos no caminho inverso: de volta à guerra de todos contra todos, de volta ao estado da natureza.

Parece que estamos no lento e tortuoso processo de nos dissolvermos como sociedade civil e política. As leis não podem ser alteradas ou aprovadas. Ninguém quer a responsabilidade da governação. A resposta é sempre “não pode ser feito”. Mas foi feito a nós. As leis foram de facto agravadas. O símbolo principal e o motor principal deste processo é a anarquia das nossas leis sobre armas. Max Weber disse que o Estado era o monopólio do uso legítimo da força. Carl Schmitt disse que o soberano é  ele quem decide sobre o estado de exceção. Agora cada homem pode ser a sua própria força de comando, um exército de um só, cada homem é o soberano que pode decidir sobre a exceção em que as leis da sociedade já não se aplicam, quando de repente pode recorrer à violência. Ninguém lhe diz, de uma outra forma: ele tem uma arma. Não há “legítimo” ou “ilegítimo”, apenas força. A única solução oferecida é distribuir mais soberania: fazer com que mais homens sejam o seu próprio estado armado  até aos dentes para controlar o outro.  A ideia é, assim se espera, criar um bloqueio  – se não exatamente paz – através do medo mútuo. Cada homem tem o seu próprio poder nuclear.

Nunca  ouviram falar do Oeste Selvagem, do Far-West? Mesmo na nossa versão mítica, todos tinham armas e ainda havia muitos tiros. Os homens eram famosos pela sua habilidade em disparar contra outros homens. Para muitos, este é o próprio ideal americano: o indivíduo robusto na fronteira da anarquia, capaz de defender o que é seu. Mas o cowboy com o seu arma de  seis tiros ou a sua caçadeira, o seu bom humor cínico, a sua alternância da crueldade à inocência e a decência básica sugestiva do homem primitivo, foi substituído por uma figura mais sinistra: o operador de forças especiais acobardado, o membro do esquadrão da morte, silencioso, frio, impessoal, quase um robô, programado para o abate. Samuel Colt produziu a arma que ganhou o Oeste, um revólver, um feito tecnológico na altura e que é agora uma antiguidade e quase um brinquedo inofensivo em comparação com o Colt AR-15.

Estamos longe do mito do homem da fronteira, o minuteman, o cowboy, o pistoleiro, os quais, como imagens heroicas, encobriram realidades mais assassinas, mas pelo menos eram ideais atraentes de autoconfiança ou autodefesa comunitária. Em vez da autoconfiança, agora temos apenas o inverso na forma de pesadelo da vida de um indivíduo solitário: paranoia, solipsismo, egoísmo, vendo em cada sombra uma conspiração contra o seu próprio eu. Um “eles” lá fora, alguém que temos de apanhar antes de nos apanharem, ou alguém que já não é realmente um ser humano para nós. Porque o que é um ser humano, afinal? Para que essa noção exista, é preciso reconhecer os outros e ser reconhecido, para viver numa comunidade. Pessoas? São apenas algo que nos irrita, que nos frustra, que nos  humilha, então porque não nos atiramos contra eles? Matá-los, depois nós mesmos  – qualquer coisa para quebrar a vergonha insuportável de ser percebido. Armar a população  não criou heroicos tipo  Beowulf [1] , prontos a fazer atos altruístas, mas sim outros monstros, outros tantos tantos Grendels[2], levados à loucura pelos sons do convívio, introduzindo-se nas nossas salas vindo dos pântanos  e derramando sangue para vingar a ofensa que lhes foi feita pela humanidade de base.

O racismo é um dos resultados lógicos desta visão do mundo: é apenas egoísmo puro e nu e a ambição tudo  transporta do nível individual para o nível coletivo, a negação da humanidade comum. Já não deve surpreender ninguém que tantos nazis americanos cheguem até aqui lendo primeiro os radicais libertários : ambos partilham a mesma raiz venenosa. Em vez de cidades partilhadas por homens e mulheres, concebem um mundo de bestas, enxames, hordas, de labirintos,  antros, locais de emboscada. Vico chamou a este estado, a última fase do seu ciclo de civilização, a “barbárie da reflexão”, quando a excessiva autoconsciência e a procura de si próprio do homem civilizado criaria um regresso à bestialidade:

Pois tais pessoas ou povos,  como tantos animais, caíram no costume de cada um pensar apenas nos seus próprios interesses privados e chegaram ao extremo do refinamento, ou melhor, do orgulho, em que, como os animais selvagens, se picam e agridem ao mais pequeno desagrado. Assim, no meio das suas maiores festividades, ainda que fisicamente amontoados, vivem como animais selvagens numa profunda solidão de espírito e vontade, sendo raramente possível que quaisquer dois deles sejam  capazes de chegar a acordo  uma vez que cada um segue o seu próprio prazer ou capricho. Por causa de tudo isto, a providência decreta que, através de fações obstinadas e de guerras civis desesperadas, eles transformarão as suas cidades em florestas e as florestas em antros e os antros em covis. E sendo assim, através de longos séculos de barbárie, a ferrugem irá consumir as subtilezas maliciosas dos espertalhões,  que os transformaram em bestas tornadas mais desumanas pela barbárie da reflexão do que os primeiros homens tinham sido transformados pela  barbárie dos sentidos.

Se forçarmos um pouco mais a  nossa imaginação, podemos vislumbrarmo-nos a  nós próprios a  viver  “como animais selvagens numa profunda solidão de espírito e de vontade”, pouco capazes de concordar, enquanto as nossas cidades se transformaram em “florestas e covas de homens”. Em Uvalde, a polícia aparentemente tirou os seus próprios filhos de lá, e depois mostrou-se pior que inútil, impedindo outros pais de salvar os seus filhos, criando um espetáculo perverso de “lei e de  ordem”, que se traduziu em apenas  permitir que a maldade  trabalhe sem obstáculos e que apenas fez com se frustrasse a tendência das pessoas para se unirem para fins comuns. Esse é o futuro que enfrentamos agora. Não o Leviatã, a ditadura imposta de cima, mas a tirania descentralizada, infinitamente distribuída, granular, bloco por bloco, da espingarda de assalto, impedindo as pessoas de se unirem livremente. Mais atomização, mais solidão, mais ódio, mais medo: uma guerra de todos contra todos, vidas que são solitárias, pobres, desagradáveis, brutais e curtas. Teremos de descobrir como voltar a unir-nos, ou então morrer.


[1] Poema épico anglo-saxónico do século VIII

[2] Personagem monstruosa deste mesmo poema épico e derrotado pelo herói  Beowulf


Para ler este artigo no original clique em:

We Don’t Live In A Society – by John Ganz – Unpopular Front (substack.com)

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